[Microconto]
A
aranha e o leão
De
Rodrigo Ribeiro Cavalcante
–Mirtes!
Você está aí?
Para
quem não conhece, Mirtes é uma aranha. Sim! Isso mesmo que você está pensando:
um aracnídeo. Mas não vou falar da espécie. Nem precisa. Basta-me dizer que ela,
a Mirtes, acompanha-me a toda jornada de produção, de um tempo para cá. Olho,
agora, exatamente para ela. Há todo tipo de texto sobre os animais; em
literatura, aí nem se fala. Porque já se escreveu, e bem, sobre tudo e
sobretudo. Basta lembrar – ou ler – o Teleco, o coelho, de Murilo Rubião. Aliás,
se quiser parar por aqui e ir conferir o citado conto, O coelhinho, muito
melhor será para você. Mas, ... Mirtes é minha companheira. Aqui quase ninguém
a conhece. No entanto, aprendi a gostar dela, da Mirtes. Creio que ela me
incentiva. Olho agora para ela; e ela, acho, olha para mim. Quiçá queira dizer
algo. Abriu os olhos exatamente neste instante. Vejo com detalhes o que não vi
antes. Parece ter-se mexido. Apontando a envergadura para mim. Os olhos, pretos
brilhantes, aumentaram. Ela tem o privilégio de só olhar. Contemplar. Inclusive
ao lado, vinte e quatro horas, de duas canecas. Uma com o dizer: “500 palavras por dia.”; na outra: “Escreva a história que só você pode
contar.” Depois esclareço a origem de tais objetos, que me são caros. Há
quem diga que os bichos atrapalham a vida; pode ser que sim, pode ser que não.
Nesse momento, ela, a Mirtes, ajuda-me a viver. Porque me tirou de uma missão
árdua e desgastante: preparar a declaração de rendimentos para o leão. “Sim, entendo. Mas o senhor não acha que
esses limites para dedução estão defasados? Que já há uma sobrecarga mensal
enorme? Que poderia ser assim, assim, assim...!” Quando a vi, a Mirtes,
desviei o caminho: “Mirtes, você está aí
mesmo?” Claro, sei que preciso reaprensentar-me ao fisco. Afinal, faço isso
todos os anos. Duas situações de que não escapamos, segundo meu pai: da morte e
dos impostos. Mas, pelo menos, neste exato momento, vivo! E vivo bem! Fazendo
exatamente aquilo de que gosto. E você, já parou para pensar nisso? Em ter um
animalzinho? Olhe, é possível ser vantajoso. No mínimo, pode adiar um pouco a
conversa com a fazenda pública. A Mirtes fica, sempre, sobre uma pedra
trabalhada de vidro, em que há o meu nome registrado, no interior do troço.
Ganhei, por sorte. Também há para ela, a Mirtes, outra vantagem: estar sempre
sobre uma peça de vidro. Não por conter meu nome. Não por isso! Mas por ser de
vidro e porque deve ser confortável estar ali. Precisa ver. Aliás, será que é
bom ser um animal? No mínimo, não precisa interagir com o fisco. Essa já é uma
grande motivação para ser um bichano. Pensando bem, nem precisa agir ou, apenas
reage quando quer. Deve haver muitas vantagens em se incorporar um animal.
Começa com o fato de não ter pecado ou não alimentar sentimento de culpa. Não
precisar pensar no amanhã; os limites são os estabelecidos pela natureza;
aqueles de que nós racionais também não nos livramos. Sei que você vai dizer: “nada, ser bicho é enfrentar uma salva; e lá
também tem leão. Melhor a racionalidade!” Entendo. Mas, meu receio é já
estar – eu – numa selva. E há tempos. Escapando aqui; rodeando acolá, sem nunca
resistir ao leão. E você? Sei não! Preciso livrar-me dessa guerra. A Mirtes,
neste exato momento, olhou para mim. Chegamos próximos ao horário de uma
refeição. Outra vantagem: em regra, o comer, para ela, está sempre ali, à mão. “É isso, Mirtes?” Para ela, parece que
sim. “Mirtes?!” Creio ter ela ido à
comilança. Já eu...
–Entendo, senhor,..., meu prazo se vence hoje, dia
30, é isso?