CADEIRAS PROIBIDAS
Cadeiras proibidas
Esses dias li uma coletânea de
estórias
escrita por Ignácio de Loyola Brandão, em que um dos textos muito
me chamou à atenção. Falo do conto intitulado ‘Os
homens que se transformavam em barbantes’.
Num enredo prosístico-ficcional, o autor descreve uma cidade em que
as pessoas, da noite para o dia, transformavam-se
em barbantes, ou em vidros, tornando-se frágeis, sem que se tivesse
a menor explicação para os fatos.
Vindo de Brandão, só dá para
esperar realmente coisa muito boa, de texto. Mas a estória me atinou
o raciocínio, porquanto bem similar aos tempos em que vivemos, de
pandemia. Desenhada a ficção, talvez, lá pela década de setenta,
ali se via um povo buscando a acostumação com a vida daquela forma,
em que o medo pairava em todos. O detalhe
era que os casos se avolumavam; os jornais noticiavam e, a certo
momento, foi percepção dos
viventes
a necessidade de se
intensificarem os
cuidados, sobretudo ao andar na rua, porque o problema poderia surgir
a qualquer momento, esvaindo-se o corpo, muitas vezes sobrando apenas
o cabeça. Até do sentar numa cadeira, mesmo na ambiência externa e
ao vento, depois é
preciso,
dizem,
proceder
a uma
higienização imediata,
comparativamente àquela cidade historiada.
A secretaria de saúde local
fazia inspeção na água, no ar, para em tudo se buscar o antídoto.
Investigações nada concluíram. Tudo
embalde, para aquele
momento. No mundo real, a despeito de se saber existirem cientistas
enfronhados em
tubos de ensaio para a busca de solução à Covid-19,
a impressão que se tem é a de que o mundo começa a voltar às
atividades, em que a
sensação é no sentido de se terem
grandes receios para o problema. E
em tudo isso
precisando
as
sociedades
se acostumarem com esse estado de possibilidades de assimilação da
doença, ou para sair ileso do
problema, ou para enfrentar sabe-se lá o quê.
No enredo,
“a cidade parece
estar se habituando com a possibilidade de alguém se transmudar”
sem que haja mais “surpresa
quando um barbante é levado pelo vento ou, em dias de chuva, é
tragado pela enxurrada.”
Atualmente esse
é, no geral, o sentimento: é preciso voltar às atividades, no que
seja possível, trazendo
o
noticiário, a todo momento,
casos novos, para os quais o resultado será inesperado. E com isso
vem a percepção de
que quase tudo é
proibido; é preciso evitar tudo; é imprescindível o cuidado
máximo.
No ambiente
ficcional,
os homens, tornando-se frágeis, viam-se
prostrados, a tal ponto em que o autor indica o cenário em que “a
qualquer momento, o vírus (seria vírus?) podia atacar”. Para o
estado
da vida presente,
também se tem um vírus, de quem não se sabe o endereço, de
que forma se trasmuda, para onde vai, quantas vezes ainda atuará nos
organismos. Tudo muito incerto, para um povo que precisa
interagir, inclusive para as tomadas de decisões relacionadas às
futuras melhores formas de existência. Isso embora haja os que não
acreditem em um novo mundo. E não
são
poucos.
O livro que encarta o reportado conto se intitula
‘Cadeiras proibidas’.
[Rodrigo Ribeiro Cavalcante.
Publicado hoje, 19 de junho de 2020, no Jornal O Estado, página
opinião, fl. 2]
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