CANTO DOS NÃO EXILADOS
Canto dos
não
exilados
Dias atrás a escritora Ana
Miranda discorreu, em crônica, sobre a vida dos livros e o aumento
do consumo desse importante guia humano, em período de pandemia.
Dizia ela que o caderno de letras foi atraído por muitos, os quais,
em casa, inclusive crianças e adolescente, buscam
nas palavras escritas uma forma de viver e ver a vida. Grande
notícia. O livro tem um cheiro, uma paginação, cores e, sobretudo,
a possibilidade de estar ali sempre, sem qualquer risco de pane ou
desaparecimento fortuito.
Todavia, de um tempo para cá
tenho refletido sobre o que se tem, ainda, de tempo de vida para
livro físico. Há um paradoxo claro nessa situação: vários
escritores, muito bons inclusive, nascem todos os dias no mercado;
textos
excelentes são
escritos
de todo lado e ramo. Mas ronda esse risco de desaparecimento do
volume palpável,
surgindo,
em substituição, o compêndio eletrônico. A
vida no
virtual tem
seu valor:
o processo eletrônico é uma revolução positiva; às
possibilidades de troca de informações e interação, via meio
cibernético, não se tem volta.
No entanto, tais aspectos não
podem exilar o livro. Porque sempre penso que tudo que possui
registro material fica para sempre, algo para o que não se pode
dizer para as anotações eletrônicas, que certamente uma hora se
vão sem, outra
contradição,
backup. É como o beijo ou abraço, que precisam existir de modo
concreto; é como a democracia, a qual, além do efetivo papel
constitucional, precisa ser alimentada e estar ali à vista, para
nunca ser esquecida ou ameaçada. Creio que o livro realmente físico
poderia resolver as truculências políticas vividas atualmente, ou
poderia amenizar as desavenças entre gestores-representantes dos
Poderes da República; ou para inibir indícios de corrupção em
vários assuntos, inclusive sanitários, assimilando-se, no trato com
o livro, posturas que deveria ser totalmente diferentes do que se vê,
atualmente. Não uso letras aqui em causa própria. Jamais. Refiro-me
ao que está por vir, pois,
como dito, há excelentes escritores produzindo todos os dias.
Sussene Bach, nascida em Munique
no início do século vinte e amante dos livros, viveu no Brasil por
várias décadas, em face de exílio, algo terrível para a
humanidade, porquanto permeia sensação de desproteção e falta de
alicerce. A impressão que sinto
é essa: a eventual futura ausência de registros fortes, firmes e no
papel, para o passado, presente e futuro, quando se anuncia, ainda
que paulatinamente, o sumiço da obra física. Algo que certamente
não ocorrerá para muitos, sobretudo para os
apreciadores desse objeto profundo, imbatível, que não se deixará
vencer pelo mundo cibernético.
A
referida escritora estrangeira
deixou uma livraria funcionamento, e ativa, ainda, no Rio de Janeiro,
em que se tem como slogan a expressão, em Latim, vertida
ao Português, que diz “o amor com os livros nos liberta”. E deve
ser isso, sem que seja mais possível no mundo se falar em exílio,
quebra de regras democráticas, desrespeito a etnias, classes, cor ou
agressão a todas as formas de opção de vida, para tudo isso sendo
imprescindível que ao livro físico seja reverenciado
o
canto
dos
não
exilados.
[Essa crônica foi escrita e originariamente publicada no Jornal O Estado, edição de 5 de junho de 2020. Rodrigo Ribeiro Cavalcante]
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